Aves provam que Cerrado conectou os Andes com a Mata Atlântica

Análise genética e computacional em aves sugere que florestas tropicais andina e atlântica, hoje separadas por quase mil quilômetros de áreas mais secas e vegetação aberta, tiveram períodos de conexão no passado (ave da espécie Syndactyla rufosuperciliata / foto: Gustavo Cabanne)
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As florestas tropicais dos Andes e a Mata Atlântica estão separadas por quase mil quilômetros de áreas mais secas e de vegetação aberta, nos biomas Chaco, Cerrado e Caatinga. Apesar de atualmente não terem conexão, essas florestas tropicais compartilham espécies e linhagens intimamente relacionadas, o que sugere ter havido uma ligação entre essas matas no passado. Há, por exemplo, 23 espécies de aves tropicais presentes nos dois biomas.

Diversos estudos publicados reforçam tal hipótese. O que ainda não se sabia era se a ligação se dava por meio das florestas de galeria que, no passado, acompanhavam os cursos dos rios na região do Chaco (que abrange o sul da Bolívia, o norte da Argentina e o Paraguai), ou pelo Cerrado (parte da Bolívia, Centro-Oeste do Brasil e norte do Paraguai).

De acordo com uma nova pesquisa, que analisou dados genômicos e biogeográficos de aves das espécies Syndactyla rufosupercilita e Syndactyla dimidiata, a conexão entre as florestas andina e atlântica no passado ocorreu pelo Cerrado. A ligação teria se formado diversas vezes durante o Pleistoceno, período geológico ocorrida entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás.

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A investigação foi conduzida pelo ornitólogo Gustavo Cabanne, do Museo Argentino de Ciencias Naturales, em colaboração com Cristina Yumi Miyaki, professora no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Os resultados foram publicados na revista Molecular Phylogenetics and Evolution.

Equipe internacional

Participaram pesquisadores de diversas instituições no Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Universidade de Brasília e Museu Paraense Emílio Goeldi), Bolívia (Universidad Mayor de San Andrés e Museo Nacional de Historia Natural), Estados Unidos (American Museum of Natural History e Cornell University) e Canadá (Royal Ontario Museum).

Biogeografia

A biogeografia é a ciência que estuda as relações entre os seres vivos, a geografia, o relevo e o clima. A paleobiogeografia parte dessas mesmas relações para entender, por exemplo, como era a distribuição das espécies no passado e as relações existentes entre elas. Entender a paleobiogeografia de diversas espécies que habitam áreas específicas no presente pode ajudar a inferir como era a distribuição desses biomas no passado.

“O grande desafio dos estudos de biogeografia é integrar e interpretar as informações obtidas de diversas fontes, como componentes biológicos, dados genômicos das espécies analisadas, informações geológicas, dados paleoclimáticos, dados palinológicos [de pólen e esporos] ou dados de sensoriamento remoto obtidos a partir de imagens de satélite”, disse Miyaki.

“Foi preciso coletar e analisar vários desses dados a fim de investigar a hipótese da existência de uma antiga conexão entre as florestas tropicais andina e atlântica e testar se isso ocorreu via Cerrado ou via Chaco. Pode ter sido por meio de florestas de galeria que, no Pleistoceno, seriam remanescentes de vegetação úmida que atravessam biomas mais áridos”, disse.

De acordo com Cabanne, a conexão entre as florestas úmidas andina e atlântica é apoiada por estudos palinológicos, entre outros, segundo os quais ambas se expandiram transitoriamente em algumas regiões (por exemplo, no Cerrado) em direção aos Andes durante os últimos máximos glaciais – os períodos mais frios das diversas idades do gelo (foram identificadas ao menos 11 delas) que ocorreram nos últimos 2,5 milhões de anos.

“Sob esse cenário biogeográfico histórico, as florestas andina e atlântica poderiam ter funcionado como refúgios. Sua história dinâmica [ciclos de conexão e isolamento] poderia ter sido um importante impulsionador da especiação nos neotrópicos [região que compreende a América Central, incluindo parte do México e dos Estados Unidos, todas as ilhas do Caribe e a América do Sul]”, disse.

No presente período interglacial, explica Cabanne, esses biomas florestais representam refúgios onde se espera que organismos se diferenciem. Durante as idades do gelo do Pleistoceno, as florestas teriam sido conectadas, permitindo, assim, o fluxo gênico entre as regiões.

Genética e análise computacional

No trabalho publicado na revista Molecular Phylogenetics and Evolution, os pesquisadores elegeram como objeto de estudo uma ave popularmente conhecida como trepador-quiete (Syndactyla rufosuperciliata). Trata-se de um passarinho (ordem Passeriformes) da família dos furnariídeos, a mesma do joão-de-barro (Furnarius rufus) e de outras 230 espécies encontradas na Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai. Existem cinco subespécies reconhecidas desse táxon.

“O trepador-quiete é um modelo apropriado para explorar a conexão das florestas andina e atlântica porque a espécie habita tanto os principais domínios dessas matas como as áreas que poderiam ter sido diretamente envolvidas na sua ligação: as florestas de galeria do Chaco oriental e algumas regiões no sul do Cerrado”, disse Cabanne.

Os pesquisadores exploraram a conectividade histórica entre os dois biomas por meio de modelagem de nicho. A seguir, eles usaram sequências de DNA de 71 indivíduos e análises genômicas de outros 33 pássaros para avaliar a estrutura genética da população e o fluxo gênico dentro da espécie. Por fim, foi realizada a seleção do modelo populacional com auxílio de computação bayesiana aproximada, método de inferência com base em estatísticas sumárias.

Segundo os pesquisadores, a análise genômica evidenciou que os trepadores-quiete habitantes das florestas tropicais andinas pertencem hoje a linhagens diferentes daquelas dos trepadores-quiete da Mata Atlântica. Mas nem sempre foi assim. No passado, há centenas de milhares de anos, a distribuição original da espécie parece ter sido muito maior do que a atual, e também suas linhagens eram menos diferenciadas do ponto de vista genômico.

Porém, com a sucessão de períodos glaciais e o avanço e recuo da vegetação de Cerrado, os passarinhos andinos e atlânticos foram ficando isolados uns dos outros por dezenas de milhares de anos, o que levou à diversificação em duas linhagens.

Os dados sugerem inclusive que, durante os períodos interglaciais do Pleistoceno, quando a temperatura se elevou e houve avanço das florestas úmidas, ocorreram novos contatos entre trepadores-quiete do leste e do oeste, o que permitiu cruzamentos e novas trocas genéticas entre as duas linhagens.

Aliada aos dados paleoclimáticos, a análise da diversidade genômica dos trepadores-quiete andinos e atlânticos sugere que tais trocas gênicas ocorreram via Cerrado, ao norte, e não via Chaco, mais para o sul.

“Nossos resultados indicam que as florestas andina e atlântica atuaram como refúgios e que as populações das espécies de ambas as regiões entraram em contato por meio da região do Cerrado, sugerindo que a dinâmica histórica desses dois biomas é importante para a evolução das aves florestais”, disse Cabanne.

“Os resultados estão de acordo com estudos de outros organismos e podem indicar um padrão mais geral de conectividade entre os biomas nos neotrópicos”, disse Miyaki.

Além disso, segundo Cabanne, o novo estudo e outros anteriores do mesmo grupo “sugerem a existência de altos níveis de diversidade críptica [de espécies morfologicamente semelhantes e geneticamente distintas] entre os Andes e a Mata Atlântica e também sugerem considerar a população andina de trepadores-quiete como uma espécie plena”.

Apoio

A equipe teve apoio da FAPESP, por meio do Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA), do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet), na Argentina, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Fonte: Fapesp

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