Nada de voo de galinha. Sustentabilidade chegou para ficar.

Em tempos de emergência climática, marcados por dúvidas, perplexidade e insegurança, a areia da ampulheta parece escorrer muito rápido contra as próximas gerações

Sustentabilidade chegou para ficar | Foto: Reprodução/Unsplash
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sustentabilidade tornou-se da noite para o dia uma espécie de nova ordem nos negócios. O CFO que lesse hoje, por exemplo, o noticiário sobre empresas, após um sabático de 14 meses, num mosteiro do Tibete, levaria um susto danado não só com o destaque conferido ao tema, mas com a inédita importância atribuída pelo mercado financeiro a esse conceito, que passou a ser mais conhecido entre os investidores como ESG.

Compreensível a reação. Como explicar afinal que um assunto tratado com desprezo pelo C-Level, ao longo de duas décadas, tenha se transformado, em pouco mais de um ano, de agenda secundária e fonte de despesa em certificado de prosperidade no discurso de líderes, antes arredios, agora entusiastas de primeira hora? E isso tudo, vale reforçar, com uma pandemia no meio do caminho.

A resposta, mais simples do que parece, não tem nada a ver com o valor intrínseco do conceito de sustentabilidade mas com mudanças na lógica de quem define o que é valor no mercado. Nunca as questões ambientais, sociais e de governança deixaram de ser importantes para a humanidade — nem poderia ser diferente, dada a grave circunstância de vivermos em tempos de aumento das emissões de gases de efeito estufa e de esgotamento de recursos naturais.

A única novidade agora é que o capital, antes refém da falsa ideia de que resultado bom é resultado azul (ia despeito dos impactos causados em sua geração), passou a enxergar nelas valor econômico-financeiro e a utilizá-las, por tabela, como indicador prioritário na análise do potencial de prosperidade dos negócios. Os investidores entenderam que as empresas que poluem rios, descuidam dos seus colaboradores e desrespeitam as comunidades apresentam mais riscos.

Pelo mesmo raciocínio, as empresas que usam os recursos naturais de forma equilibrada, não praticam corrupção, promovem os direitos humanos na cadeia de valor e produzem valor para todos os stakeholders representam menor ameaça ao investimento, simplesmente por que, na ponta do lápis, ao gerarem menos externalidades negativas custam menos para as sociedades e o meio ambiente.

Lógica similar tem sido aplicada por bancos, no empréstimo com juros menores para empresas sustentáveis, e por financeiras, na oferta de fundos verdes, constituídos por ações de empresas com boa nota em ESG, que tendem, por essa razão, a render mais do que a média dos fundos convencionais. E também pelas bolsas de valores e os índices de sustentabilidade. Ser sustentável passou a ser o novo normal competitivo. ESG virou sinônimo de investimento bom, inteligente e cuidadoso.

A ascensão do conceito de sustentabilidade é um desses casos clássicos de fenômeno que não pode ser explicado pela simples soma das variáveis. Nem por uma análise que não seja sistêmica: fundamenta-se no surgimento de novas lógicas, originadas de uma ética mais contemporânea e do tenso embate entre dois modelos econômicos divergentes — um, típico do século 20, e em processo claro de extinção, focado na noção do lucro rápido e a qualquer custo versus outro em movimento de expansão, mais condizente com os valores do século 21, baseado na ideia de lucro em promoção – não em prejuízo – de pessoas e meio ambiente.

Como em todo movimento de transição, o passado ainda não passou completamente e o futuro não se instalou por inteiro. As percepções explicam mais do que os fatos. De qualquer forma, os fatos importam sim. E ajudam a organizar uma narrativa verossímil. Um marco, nesse cenário, foi a Declaração de Propósito Empresarial, lançada em agosto de 2019, por 181 grandes empresas norte-americanas associadas à Business Roundtable. Assinado, entre outros, por líderes como Tim Cook (Apple), Jeff Bezos (Amazon) e Michael Dell (Dell), o manifesto ganhou uma capa no Financial Times propondo a valorização do propósito antes do lucro.

E caiu como uma granada nos pés dos capitalistas mais conservadores, ainda orientados pelas máximas do economista Milton Friedman, o guru da Escola de Chicago. Fosse um documento redigido por ativistas ambientais seria esquecido no dia seguinte.

Encabeçado, no entanto, pelos próprios capitalistas, soou ainda mais subversivo e, por isso mesmo, altamente disruptivo. Para se ter uma ideia do seu impacto, é como se os presidentes dos 181 maiores clubes de futebol do planeta se reunissem para apresentar mudanças importantes nas regras do esporte, conhecidas em todo o mundo há quase um século.

Menos de um mês após a declaração, 230 investidores europeus ligados á Ceres, aderiram com entusiasmo ao movimento. No mesmo impulso, o Sistema B, um dos mais relevantes influencers globais na redefinição de um novo capitalismo, aplaudiu a iniciativa e convidou o “clube dos 181”, para um “mãos á obra”, também com um anúncio (Let’s go to work!) no mesmo Financial Times.

Janeiro de 2020 ampliou em muito as bases do debate, levando-o a um ponto sem retorno. Primeiro foi Larry Fink, CEO e presidente do Conselho da Black Rock, maior gestora de recursos do planeta (US$ 6,9 trilhões em carteira) e a sua tão aguardada carta anual.

Como era de se esperar, ele voltou ao assunto de suas duas mensagens anteriores ao mercado, só que, desta vez, de forma ainda mais pontiaguda: ou a empresa insere ESG em sua estratégia, eliminando práticas que contribuem, por exemplo, para as mudanças climáticas, ou colocará em risco a sua perenidade. Sendo Fink quem é, estando ele no topo da cadeia alimentar do mercado, sua missiva provocou um efeito manada. Nenhuma gestora de recursos voltou a pensar com a cabeça de antes. Melhor para as sociedades e o planeta.

Depois veio o Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos. Três dos cinco dias do encontro foram dedicados a fortalecer a tese do Business Roundtable, debatendo o que recebeu

o nome de “capitalismo de stakeholder”, um novo tipo de capitalismo mais orientado pela ideia de compartilhar valor com todas as partes interessadas. Em vez de frear o movimento de valorização da sustentabilidade nos negócios, como seria de se esperar, a pandemia só fez acelerá-lo, em grande medida — penso — porque nos colocou a todos, cidadãos, empresas e governos, em igual situação de vulnerabilidade, de instabilidade e de incerteza quanto ao futuro.

A esta altura do artigo, é justo ressaltar que a mudança na direção de um modelo alternativo ao business as usual não ocorreu, como pode parecer, de modo natural. Nem de fora para dentro. Nenhum sistema complexo muda de forma espontânea.

É preciso alguma dose de entropia — um certo caos para promover o desequilíbrio que costuma levar a um novo equilíbrio. E, nesse caso, o caos resultou do impacto de diferentes de fontes de pressão sobre um contexto marcado pela força de uma variável de natureza demográfica, pouco lembrada nas conversas sobre a recente ascensão do ESG: a chegada dos millennials (geração Y) ao poder.

Os que têm entre 30 e poucos a 40 anos compõem hoje 2,43 bilhões de pessoas no mundo. São consumidores ávidos de produtos e serviços, dispõem de recursos de sobra para investir em empresas (algo como US$ 2,3 tri por ano) e estão ocupando as melhores oportunidades de empreendedorismo e os melhores postos de trabalho, inclusive os de comando.

Pertencentes a uma geração movida por propósito, mais do que por dinheiro, eles sabem muito bem o que querem e já decidiram estabelecer relações de negócio com empresas éticas, transparentes, íntegras, respeitosas relação às pessoas e ao meio ambiente, que pensam e agem como um indivíduo decente.

Este é um argumento, aliás, que costumo usar quando indagado se a atual ênfase à sustentabilidade, vista como excessivamente otimista, não seria mais um “voo de galinha” (termo cunhado por economistas para designar um crescimento econômico que não se sustenta) de um tema que, no passado tentou sem nunca conseguir, ser um driver estratégico na empresas. Não acredito.

O movimento atual assemelha-se mais a um voo de águia —constante, estável e longo. E por uma razão muito simples: além do fato de que os babyboomers e parte da geração X ou se aposentaram ou estão se aposentando, e os millenials encontram-se no auge de sua vida econômica ativa, surge com muita força uma nova geração (a Z), ainda mais ativista e preocupada com sustentabilidade, o que significa, no mínimo, mais três décadas de pressão pró-negócios mais sustentáveis.

Estamos, portanto, no início de uma curva de alta da sustentabilidade como bússola de gestão de negócios. Para citar um dos grandes nomes do capitalismo global, Alan Joper, CEO da Unilever, “não existe mais diferença entre nossas estratégias de negócio e nossas estratégias de sustentabilidade, pois elas estão definitivamente integradas.” A questão que se coloca agora não é mais quantas empresas entrarão na corrente. Mas de que forma farão essa entrada e em que ritmo.

Serão coerentes em seus compromissos públicos, inserindo ESG na estratégia e construindo propósitos claros, ou apenas cederão á tentação de atender superficialmente investidores à beira de um ataque de nervos? Serão consistentes em suas propostas de atuação, encaminhando tudo no tempo certo, e dedicando atenção compatível com aquilo que precisa ser duradouro, ou farão rápido apenas para constar em relatórios de poucos leitores? A conferir nos próximos anos.

Em tempos de emergência climática, marcados por dúvidas, perplexidade e insegurança, a areia da ampulheta parece escorrer muito rápido contra a as próximas gerações. A sustentabilidade é boa nova. A humanidade tem pressa.

*Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável, escritor, conselheiro de empresas, palestrante e mentor de líderes em sustentabilidade.

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FONTE:
Época

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